A médica condenada a 30 anos de prisão na Venezuela por criticar Maduro em áudio no WhatsApp
28/11/2025
(Foto: Reprodução) A família de Orozco diz que ela não participava de atividades políticas e só expressou uma opinião.
Paul Ruiz/Arquivo pessoal via BBC
Trinta anos de prisão. A pena máxima que a legislação venezuelana reserva para crimes como homicídio, sequestro e estupro foi imposta a Marggie Xiomara Orozco Tapias, uma médica de 65 anos.
Mas a profissional de saúde não matou nem sequestrou ninguém.
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Seu crime foi ter enviado, durante a campanha para as eleições presidenciais de 28 de julho de 2024, uma mensagem de áudio por WhatsApp para um grupo de vizinhos de San Juan de Colón, no estado andino de Táchira (na fronteira com a Colômbia), na qual ela pedia que as pessoas votassem contra Nicolás Maduro e o culpava pela crise econômica no país.
Oito dias depois das eleições, que segundo o Conselho Nacional Eleitoral (CNE) teve Maduro como vencedor — ainda que não tenha sido apresentada nenhuma prova em relação a isso — a polícia prendeu Orozco.
"Alguns policiais chegaram na noite do dia 5 de agosto à casa e disseram à minha mãe: 'Nos acompanhe'. Ela não queria ir, mas os policiais disseram que não estava detida, mas que queriam interrogá-la, então ela foi com eles. Passamos três dias sem ter notícias dela", contou o filho da médica, Paul Ruiz, à BBC Mundo — serviço em espanhol da BBC.
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A gravação da médica chegou às mãos de apoiadores do governo, que a denunciaram ao Ministério Público após ameaçarem cortar benefícios como a cesta básica subsidiada e o botijão de gás de cozinha.
O caso de Orozco é o mais recente de uma série de processos judiciais contra cidadãos que exerceram seu direito à liberdade de expressão nas redes sociais. Um direito que as autoridades venezuelanas alertam "não ser absoluto".
A desculpa para a invasão
"Esses apelos colocam em risco a paz da Venezuela e são o motivo pelo qual o governo dos Estados Unidos quer nos invadir."
Isso teria sido dito pela juíza Luz Dary Moreno Acosta ao condenar, no dia 16 de novembro, Orozco pela prática dos crimes de traição à pátria, conspiração e incitação ao ódio, relatou o filho da médica.
Mas o que disse a médica para ser condenada à pena máxima?
"Ela pediu à comunidade que saísse para votar [contra Maduro] e que [os vizinhos] deixassem a sem-vergonhice de apoiar o governo, enquanto seus filhos estão fora trabalhando e o país está caindo aos pedaços", contou Ruiz.
O filho da médica admitiu que a mensagem foi "forte", mas negou que sua mãe tenha cometido um crime.
"Ela não saiu às ruas para atirar pedras ou queimar pneus. Nem pediu por uma invasão estrangeira", afirmou.
Orozco foi presa em agosto de 2024 após ser denunciada por apoiadores do governo.
Paul Ruiz/Arquivo pessoal via BBC
Nas últimas semanas, os EUA reuniram, nas águas do Caribe, uma frota de navios de guerra — entre eles seu maior porta-aviões e o mais moderno, o USS Gerald R. Ford — com o objetivo declarado de combater o narcotráfico.
Contudo, Caracas alega que esse destacamento militar visa, na verdade, a uma "mudança de regime" na Venezuela.
"Assim como você sofre, as pessoas que estão no governo também sofrem", disse a juíza a Orozco, segundo relato do filho, que disse ter obtido os detalhes por meio dos advogados que estiveram presentes quando a juíza leu a sentença.
Embora a sentença não tenha sido publicada, o Ministério Público da Venezuela confirmou à BBC Mundo que ela foi proferida, mas recusou os pedidos de mais comentários.
Nem mesmo o fato de Orozco ter sofrido um infarto durante o ano em que esteve presa serviu como atenuante para o sistema judiciário.
Em março passado, a juíza Moreno negou à médica a permissão para esperar o julgamento em liberdade condicional, por considerar que existia "risco de fuga" e porque ela "poderia influenciar testemunhas a fornecer informações falsas ao tribunal, comprometendo a veracidade dos fatos e a realizaçãod a justiça".
A decisão ocorreu semanas depois do ministro do Interior, Diosdado Cabello, advertir que "perseguiria" todos aqueles que apoiassem uma invasão.
"Se alguém decide pedir invasões contra nosso país, imediatamente está assumindo que se autoexclui de suas obrigações como venezuelano, e o Estado se reserva no direito de tomar as medidas que julgar cabíveis", alertou semanas atrás.
Cuidado com o que você diz
Outras pessoas que ouviram o áudio de Orozco disseram à BBC Mundo que "era uma gravação de 17 minutos bastante agressiva em alguns trechos".
Isso explicaria por que a médica foi acusada com base no artigo 20 da polêmica Lei Constitucional contra o Ódio, pela Convivência Pacifíca e pela Tolerância, de acordo com os registros judiciais.
A norma estabelece que:
"Quem publicamente ou mediante qualquer meio apto para difusão pública fomentar, promover ou incitar o ódio, a discriminação ou a violência contra uma pessoa ou grupo de pessoas, em razão de seu pertencimento real ou presumido a determinado grupo social, étnico, religioso, político, de orientação sexual, identidade de gênero ou qualquer outro motivo discriminatório, será sancionado com prisão de dez a vinte anos, sem prejuízo da responsabilidade civil e disciplinar pelos danos causados,"
Por ser vaga e abrangente, a lei tem sido criticada por organizações internacionais de direitos humanos, que argumentam que ela pode ser usada para silenciar vozes críticas.
Entre 2021 e 2023, ao menos 22 venezuelanos foram presos por exerceram a liberdade de expressão. Várias dessas prisões estão vinculadas a conteúdos difundidos em plataformas digitais, informou a organização Espacio Público.
Antes da sentença de Orozco ser proferida, ocorreram outras duas decisões semelhantes.
A primeira envolve Marcos Palma, de 50 anos, que foi condenado a 15 anos de prisão por um áudio que enviou a um grupo de WhatsApp na qual se queixava de não ter recebido o botijão de gás que pagou e convidava seus vizinhos para um protestos.
Semanas depois, Randal Telles, uma estudante de enfermagem de 22 anos do estado de Barinas, também foi condenada a 15 anos de prisão por um vídeo no TikTok em que criticava Maduro e Cabello.
No entanto, sua família afirma que a gravação não foi feita por ela, mas uma montagem criada com inteligência artificial.
Esses casos explicam porque muitas pessoas no país têm evitado discutir sobre determinados assuntos nas redes sociais e constantemente apagam os históricos de seus celulares.
Em 2017, o Procurador-Geral da Venezuela, Tarek William Saab, admitiu que a polêmica lei sobre o discurso de ódio tinha "um caráter preventivo, educativo e dissuasor".
"A liberdade de expressão não é um direito absoluto, tem limites. E na Venezuela há uma legislação que a regulamenta", afirmou um magistrado sob condição de anonimato.
Sem apoio
A condenação da médica tem sido criticada dentro e fora do país.
"Esse caso evidencia que a falta de independência do sistema de justiça venezuelano está profundamente enraizada e que ele continua a funcionar como parte do aparato repressivo do Estado", afirma Gloria De Mess, relatora da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) para a Venezuela.
Após afirmar que a Lei contra o Ódio "restringe severamente o direito à liberdade de expressão na Venezuela e gera um forte efeito inibidor, incompatível com a sociedade democrática, De Mess disse à BBC Mundo que "a aplicação desta lei em casos como o da médica confirma o clima de medo e autocensura" que prevalece no país e "desencoraja qualquer forma de dissidência, até mesmo além das fronteiras da Venezuela".
Juristas venezuelanos, por sua vez, questionaram o fundamento jurídico da sentença contra Orozco.
"Para que haja crime de incitação ao ódio, a mensagem deve provocar uma expressão de ódio por parte de um indivíduo contra outro. Quem ela incitou? A médica simplesmente expressou seu próprio sofrimento", explica o advogado criminal Zair Mundaray.
Ele também não considerou apropriada a aplicação dos crimes de traição e conspiração.
"A conspiração implica em tentar modificar o sistema republicano, mas que ação concreta ela tomou para acabar com a democracia e as instituições? E o crime de traição fala de aliar-se a nações ou inimigos estrangeiros, mas não há relatos de que ela tenha se aliado a alguém", acrescentou.
"Com esse tipo de sentença, o governo quer nos tirar o direito de protestar", afirmou o filho da médica, que reiterou que sua mãe jamais participou de atividades políticas de qualquer natureza.