Esperança Garcia: como a primeira advogada do Brasil molda a consciência negra
20/11/2025
(Foto: Reprodução) Mulheres de diferentes gerações têm Esperança Garcia como referência
O Dia da Consciência Negra, comemorado nesta quinta-feira (20), marca a morte de Zumbi, um dos principais líderes do Quilombo dos Palmares. Mas, no Piauí, a data também ganha força a partir de uma figura histórica própria: Esperança Garcia, considerada a primeira advogada do Brasil.
Esperança foi uma mulher negra escravizada no século XVIII, em Oeiras. Após ser separada dos filhos e do marido, ela denunciou as situações de violência que sofria em uma carta destinada ao então governador do Piauí. Mais de dois séculos depois, em 2022, foi reconhecida pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
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A carta, escrita em 6 de setembro de 1770, é considerada uma petição por juristas e historiadores: tem elementos jurídicos como endereçamento, identificação, narrativa dos fatos e fundamento no direito. Não se sabe, contudo, se o pedido de Esperança chegou a ser atendido e se ela reencontrou sua família.
O g1 conversou com uma pesquisadora e um estudante universitário para entender como a identidade e a luta por direitos da população negra do Piauí são moldados pela história e legado de Esperança Garcia — e quais são os desafios para torná-los mais conhecidos.
Luta contra a escravidão e reconhecimento histórico
A pesquisadora Andreia Marreiro, doutoranda em direitos humanos e cidadania pela Universidade de Brasília (UnB), faz parte do grupo que montou um dossiê e pediu o reconhecimento de primeira advogada do estado e do país.
Andreia afirma que Esperança representa uma figura singular na luta por liberdade e direitos, pois enfrentou as estruturas do colonialismo, do racismo e do sexismo que desumanizam pessoas negras.
"Esta mulher negra ergueu a sua voz e direcionou a sua palavra ao governador da província, pedindo providências sobre as violências cometidas contra ela e sua comunidade. Em um período em que a escravidão era prática legalizada, se reconheceu como uma sujeita de direitos e disse à autoridade: ponha os olhos em mim", conta a pesquisadora.
A professora explica que a petição escrita por Esperança Garcia foi achada por outro pesquisador, Luiz Mott, no Arquivo Público do Piauí em 1979. Desde então, grupos e movimentos negros reivindicam a memória dela como símbolo da luta contra a escravidão.
O trabalho de Andreia na presidência da Comissão da Verdade da Escravidão Negra da OAB do Piauí — responsável pelo dossiê que repercutiu a história de Esperança nacionalmente entre 2016 e 2018 — destaca a necessidade de preencher as lacunas no ensino sobre ela nas escolas e universidades.
"Eu não tive o direito de conhecê-la na escola. Isso não se deu por acaso, mas porque a história do Brasil é contada por mãos brancas, como diz a historiadora Beatriz Nascimento. Há um desafio enorme ainda em contar a história do Piauí pelas mãos dos povos negros e indígenas. É preciso que se conte a verdade sobre a escravidão, apresentando Esperança como uma dessas vozes", ressalta.
Resgate da memória negra e símbolo para a juventude
Para o estudante de história Santiago Belizário, que coordena a Frente Negra Revolucionária no Piauí, o resgate da memória de Esperança Garcia é fundamental para o povo negro, que vive um processo de apagamento durante a construção do país.
Na visão de Santiago, a advogada pioneira é um espelho dos piauienses e brasileiros negros que lutaram e lutam por mudanças sociais, econômicas e culturais.
"Há uma contribuição inestimável do povo negro para o Brasil, que não foi construído somente por pessoas brancas detentoras do poder político e econômico. O grande legado de Esperança é construir a identidade de pessoas com direitos, reivindicar cidadania dentro da lógica escravista", avalia.
O estudante aponta ainda que Esperança é um símbolo de autoestima e consciência racial para jovens negros, especialmente os de baixa renda e pouca escolaridade — 87% dos mortos em ações policiais no Piauí, de acordo com o relatório Pele Alva, da Rede de Observatórios da Segurança.
Quanto aos avanços conquistados pelo movimento negro, incluindo a Lei de Cotas e a obrigatoriedade do ensino da história e cultura afro-brasileiras nas escolas, o coordenador alerta que mantê-los é o principal desafio e dever de toda a sociedade.
"Ainda não há política pública estruturada para que o letramento racial aconteça nas escolas. Usa-se só o dia 20 de novembro para dialogar com os movimentos negros, quando esse processo deveria ser constante. O debate racial não pertence só ao povo negro: é impossível tratar sobre ele sem as pessoas brancas", conclui.
Memorial Esperança Garcia
Em Teresina, o Memorial Esperança Garcia foi inaugurado em 2007 — na ocasião, recebeu o nome de Zumbi dos Palmares, mas foi renomeado quando a OAB a reconheceu como primeira mulher advogada piauiense.
Localizado na Avenida Miguel Rosa, no Centro de Teresina, o memorial é administrado pela Secretaria de Cultura do Piauí (Secult) e dedicado a eventos que resgatam e celebram a cultura de povos de matrizes africanas.
No espaço, várias personalidades negras são retratadas, como os piauienses Jacinta Andrade, Nêgo Bispo, Sueli Rodrigues e Francisca Trindade. Os nomes incluem ainda Bob Marley, Nelson Mandela e Martin Luther King.
A reforma e modernização do memorial foi concluída na terça-feira (18). O Governo do Piauí investiu R$ 1,6 milhão, com recursos da Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura (PNAB), para construir um novo palco externo, atualizar e revisar as instalações elétricas e hidráulicas, regularizar o sistema de prevenção e combate a incêndios e comprar ares-condicionados e bebedouros.
Confira a carta escrita por Esperança:
"Sou escrava da administração do capitão Antônio Vieira de Couto. Ele me tirou da Fazenda dos Algodões, local onde vivia com meu marido para trabalhar de empregada doméstica. Aqui não passo bem. O primeiro dos grandes sofrimentos é que meu filho sofreu muitas pancadas e é apenas uma criança. Chegaram a tirar sangue dele pela boca. Já comigo, não consigo nem explicar, mas para eles pareço um saco de pancadas, tanto que caí certa vez de cima do sobrado. Só escapei pela misericórdia de Deus. Já a segunda é que estou com meus pecados para confessar há três anos e mais três filhos para batizar. Peço pelo amor de Deus que olhe por mim e peça ao procurador para que me mande de volta para a casa de onde me tiraram do lado do meu marido e da minha filha.
De V.Sa. sua escrava, Esperança Garcia."
Esperança Garcia: como a primeira advogada do Brasil molda a consciência negra
Arquivo pessoal/TV Clube
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