Para evitar apagão, Brasil corta energia limpa e aciona termelétricas: entenda o paradoxo chamado curtailment
14/10/2025
(Foto: Reprodução) Excesso de energia pode provocar apagão?
O Brasil vive hoje um paradoxo em seu sistema elétrico: em alguns momentos de excesso precisa cortar a geração de energia renovável, e, em outros, aciona termelétricas, mais caras e poluentes.
🔌Os cortes na geração de energia — o chamado curtailment — estão cada vez mais frequentes e já geram prejuízos bilionários aos setores eólico e solar. E mais: segundo o Operador Nacional do Sistema Elétrico, a previsão é de que eles aumentem.
O g1 conversou com o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), a Empresa de Pesquisa Energética (EPE), representantes dos setores eólico e solar e especialistas do mercado para entender quais soluções estão sendo estudadas para diminuir os cortes.
🎯 A resposta é multifatorial — e depende de medidas a médio e longo prazo. O setor enxerga como principais saídas o investimento em baterias, o aumento do consumo e a implementação de tarifas dinâmicas. (entenda mais abaixo).
Mas por que isso está acontecendo?
💧O sistema elétrico brasileiro foi estruturado entre as décadas de 1960 e 1970, com as hidrelétricas como principal fonte. Na época, o Brasil tinha domínio da tecnologia e uma grande oferta de recursos hídricos. Era a fonte mais viável para garantir energia em grande escala.
Para levar a eletricidade das grandes usinas como Itaipu (PR) e Tucuruí (PA) para o resto do país, foi estruturado o sistema de transmissão. Ele é um grande conjunto de interconexões que liga as usinas geradoras às distribuidoras.
➡️ E há uma regra básica: só se pode gerar energia se houver consumo para absorvê-la. Ou seja, o sistema precisa estar sempre em equilíbrio.
Sistema de transmissão brasileiro em 2025
Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS)
Nas últimas décadas, novas fontes passaram a integrar a matriz elétrica brasileira: primeiro a eólica, no início dos anos 2000, e depois a solar. Hoje, o país tem uma matriz mais diversa e cerca de 90% renovável — uma referência mundial.
➡️No entanto, a geração de energia cresceu em um ritmo maior do que a demanda. Em certos momentos, como um feriado ensolarado, há pouca demanda e muita geração, o que pode causar sobrecarga.
💡O apagão mais tradicional acontece quando falta energia, mas o inverso — quando há excesso — também pode sobrecarregar o sistema e fazê-lo cair.
🔎Para manter o equilíbrio, quem acompanha em tempo real o que é gerado e consumido é o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS). Quando há energia sobrando, ele precisa fazer os cortes de geração.
"A restrição de geração, curtailment, é um mecanismo de gestão de excedentes de energia que faz parte da operação. Não é uma escolha do ONS, mas uma medida necessária para preservar a segurança e a confiabilidade do Sistema Interligado Nacional (SIN)", afirmou o ONS em nota.
Quando isso acontece, os parques eólicos precisam parar as turbinas, assim como as grandes usinas de energia solar. Segundo a ABEEólica, o prejuízo acumulado desde 2023 chega a R$ 5 bilhões. Já a Absolar estima que a geração solar centralizada perdeu R$ 1,2 bilhão apenas este ano, até 20 de setembro. Para tentar recuperar parte das perdas, usinas dos dois setores recorreram à Justiça.
➡️ Desde 2022, os cortes têm sido cada vez maiores, e neste ano, tem ocorrido todos os dias.
De acordo com o Operador Nacional do Sistema Elétrico e a Empresa de Pesquisa Energética (EPE), a tendência é que os cortes de geração de energia aumentem ainda mais.
"A tendência é o aumento das restrições de geração por razão energética (quando há mais geração do que demanda), principalmente no período diurno, entre 9h e 16h, quando a geração fotovoltaica é mais intensa", afirmou o ONS.
Em menor escala, os cortes também podem acontecer por falhas em equipamentos de transmissão ou em situações em que é preciso reduzir a geração para garantir a segurança do sistema.
Para buscar alternativas, em março o Ministério de Minas e Energia (MME) criou um grupo de trabalho com a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e o ONS. Ao g1, o MME informou que "entre as medidas já encaminhadas, estão a elaboração de diagnósticos técnicos sobre a natureza e a magnitude dos cortes, a proposição de soluções regulatórias e operacionais, além da priorização de obras de transmissão e da instalação de equipamentos que aumentem a confiabilidade da rede".
Esse não é um desafio exclusivo do Brasil. Países que também ampliaram a participação das fontes renováveis em suas matrizes elétricas, como Estados Unidos, China e Austrália, enfrentam o mesmo desafio, de redimensionar o equilíbrio entre geração e consumo.
Crescimento acelerado da ‘energia de telhado’
Especialistas do setor apontam outra causa importante para o curtailment: o avanço acelerado da Micro e Minigeração Distribuída (MMGD) - popularmente conhecida como “energia de telhado”. São os painéis solares instalados em residências e empresas, que se diferenciam da energia solar centralizada, produzida em grandes usinas.
☀️🏠A “energia de telhado” ganhou um marco legal em 2022 e, impulsionada por incentivos financeiros que garantem bom retorno aos consumidores, vem crescendo rapidamente nos últimos anos.
📈Esta modalidade já responde por 18,1% da capacidade instalada do país. E o ONS projeta que, até 2029, 24,2% da capacidade instalada do Brasil virá da geração distribuída.
Essa energia também é injetada na rede elétrica de distribuição, mas o Operador Nacional do Sistema não tem controle direto sobre ela, por isso não entra no cálculo do curtailment. Do ponto de vista regulatório, a MMGD está classificada mais como consumidora do que como geradora.
🔋 E como resolver?
A resposta número 1 para esse problema, apontada tanto pelo ONS quanto por especialistas do setor, é o armazenamento: estocar a energia gerada pelo sol e pelo vento. A tendência mundial tem sido o investimento em baterias capazes de reter eletricidade nos momentos de sobra.
"O ponto positivo é que o custo das baterias está caindo bastante, no mundo todo, muito puxado pelo mercado de veículos elétricos", explica Gustavo Ponte, superintendente da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), empresa responsável por projetar e planejar o crescimento da energia no país nas próximas décadas.
Outra frente é o aumento do consumo para acompanhar a expansão da geração. Isso deve ocorrer, principalmente, por dois movimentos:
A chegada dos data centers de inteligência artificial, espaços que abrigam supercomputadores e consomem muita energia.
O avanço do hidrogênio verde, que utiliza energia limpa em sua produção.
Há também propostas de mudanças no sinal de preço, com a implementação de tarifas dinâmicas, com energia mais barata nos horários de maior geração, como entre 10h e 16h, e mais cara nos períodos de menor oferta.
Assim, o consumidor poderia economizar ao, por exemplo, ligar a máquina de lavar ou carregar o carro elétrico durante o dia.
"Um dos passos que o Brasil vai ter que enfrentar para o curtailment é uma educação do consumidor. Usar racionalmente energia é algo positivo. Não é um racionamento, esse termo ficou muito politicamente capturado. Mas deveria, como qualquer produto, ter alternativas no mercado, como essa questão do horário", disse Alexandre Viana, CEO da Envol, consultoria em energia.
A Empresa de Pesquisa Energética citou também o uso de hidrelétricas reversíveis. "É uma hidrelétrica com dois reservatórios, que bombeia a água para cima nos momentos em que está sobrando energia e turbina a água para baixo, nos momentos que você mais precisa dessa geração", explicou Gustavo Ponte.
O Operador Nacional do Sistema Elétrico estuda ainda a criação de Operadores do Sistema de Distribuição (DSO), que funcionariam como “controladores locais” do sistema elétrico, ajustando geração e consumo.
"Em paralelo, o Operador vem atuando junto com o MME, Aneel e EPE para avançar em aprimoramentos no marco regulatório e na revisão de regulamentos e de políticas públicas, para equilibrar responsabilidades, aprimorar a eficiência alocativa e garantir eficiência operacional", informou o ONS.
Também está em pauta a modernização e a expansão do sistema de transmissão. "Você tem uma tecnologia nova, num sistema antigo, então enquanto você não adaptar o sistema para essa nova tecnologia você tem um desbalanço", disse Jonathan Colombo, engenheiro e professor do MBA em ESG de Mudanças Climáticas e Transição Energética da FGV.
Uma coisa é fato: a maior participação de renováveis impõe novos desafios, mas representa um avanço importante em direção à sustentabilidade.
Para os especialistas, o Brasil está no caminho do que é considerado ideal, a combinação de diferentes fontes de energia, em vez da dependência quase exclusiva das hidrelétricas que marcou o século passado.
"Hoje é uma combinação do que a gente chama de projetos híbridos, um projeto que vai combinar várias tecnologias. Como, por exemplo, eólico com solar, ou eólico com solar e bateria. O futuro está no que a gente chama na hibridização, a combinação de várias tecnologias", disse Colombo.
a COP 30 e nosso futuro
Hidrogênio verde será o combustível do futuro?
Parque de energia eólica na Bahia.
Paula Fróes/GOVBA